terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Um canto feito de luz e cal


Um canto feito de luz e cal


A Luz da cal ao canto do lume


Tradição oral do Concelho de Mora, Joaninha Duarte, Ed. Colibri, 2009

                                                 Conta-me contos, ama…/ Todos os contos são/ Esse dia, o
                                                   jardim e a dama/ Que eu fui nessa solidão…” Fernando Pessoa


“Dizem que”… a magia desta “luz da cal” emana do azul (a mais profunda e imaterial das cores) da capa, habitada pela bela ilustração de Danuta Wojciechowska que representa um “talego” – recipiente mágico onde cabem todos os sonhos, objecto a partir do qual a autora, Joaninha Duarte (contadora de histórias, investigadora do IELT, doutoranda em Literatura Tradicional e Ambiente) se auto-define.
Abrimos o livro. Iniciamos a nossa viagem por esta excelente recolha do património da tradição oral do concelho de Mora (“filha” da dissertação de Mestrado concluída pela autora em 2008). Na primeira parte, é dado o ponto inicial deste magnífico bordado tecido no âmago da palavra, com as linhas que só os saberes ancestrais sabem unir e tecer. Assim, conhecemos os vectores constituintes da “memória de um povo que sabe passajar”, o seu património histórico, socioeconómico, natural, etnográfico: “há poucos velhos e muitos anciãos, porque eles decoram (e decorar é ter no coração) a vida e, ao passajá-la, oferecem-na nova e iluminada (pela luz da cal?) aos mais novos.” (p.50). Seguidamente, no capítulo II, é tempo de “acordar a palavra adormecida”, no manto de memórias, que define o concelho de Mora. São aqui apresentados os diversos e meritórios projectos que pretendem resgatar das brumas do esquecimento a comunidade da Tradição Oral, através da preciosa partilha da palavra, e que têm sequência nos “fios entrelaçados na palavra do contador”.
Nesta esteira, a segunda parte é constituída pela recolha, subordinada ao significativo mote “Do meu Canto do Lume/vejo quanta Luz de Cal se pode ver do Universo” (p. 105).
É precisamente nesta parte que a luz incide sobre a recolha do “Património Imaterial” do Concelho, realizada ao longo de uma década, urdindo uma “manta de retalhos”, tecida por fragmentos dos géneros da literatura popular de sete categorias distintas: Cancioneiro, Novelística (anedotas, contos, casos ou partes, histórias da vida, lendas); Paremiologia (ditos e “ditotes” expressões idiomáticas); Poesia Narrativa; Romanceiro; Saberes Etnográficos (remédios caseiros, receitas, etc.); e por último, a “Vária” (lengalengas, orações, mezinhas, etc). Deste modo, ao percorrermos estas páginas, descobrimos um autêntico “tesouro”, recheado dos múltiplos, profundos e ancestrais saberes, de experiência feitos, esculpidos pela simples magnitude da vida. É o reencontro com a magia da palavra que terá povoado as nossas infâncias, habitada por personagens como o “toiro azul”, “a cegonha e a raposa”, o “macaco do rabo cortado”, (entre tantas outras), delineadas em diversas versões, pois é como é consabido “quem conta um conto acrescenta um ponto”.
Em suma, num tempo marcado pelo individualismo de um mundo cada vez mais prosaico, egoísta, cibernético, consumista, onde as relações humanas são cada vez mais distantes e frágeis, importa saudar este tão valoroso “talego” que resgata dos abismos do esquecimento a sábia voz popular dos anciãos, cuja palavra mágica, “ao canto lume”, acenderá, nas almas dos leitores, uma luz tecida de poesia, sabedoria e memória.
“Bem dito e louvado” o meu texto está acabado.


Dora Nunes Gago